Enchente no Natal de 95

Era dezembro, o espírito natalino contagiava as ruas da localidade de São Bento, em Nova Veneza, bem próximo à costa da Serra do Rio do Rastro. Famílias começavam a se reunir para comemorar mais um Natal. O que não sabiam era que o Natal de 1995 ficaria marcado na memória daqueles que testemunhariam umas das maiores tragédias da região Sul de Santa Catarina.

Dia 23 de dezembro de 1995, em meio ao início das comemorações da véspera de Natal, a chuva chegou à região. Uma garoa fina e constante começava a dificultar as festividades, porém, mesmo com o mau tempo, o dia transcorreu com tranquilidade. Aqueles que eram mais experientes começaram a avistar o rio, que, subindo aos poucos, já causava preocupação.

Às 21 horas do mesmo dia, na localidade em São Pedro, na divisa entre Siderópolis e Nova Veneza, as aguas já começavam a beirar a porta das casas que se localizavam mais próximas da encosta. Mas o pior chegou logo, já se aproximando do dia 24, por volta das 23 horas, a água começou a invadir as casas e a correnteza já levava o que de mais fraco tinha pela frente.

Em Nova Veneza, na localidade de São Bento, as coisas ainda seguiam dentro da normalidade, até que na noite de Natal o inesperado aconteceu. A chuva tinha sido ainda mais forte no Planalto Serrano, o que fez com que uma enxurrada descesse a serra e invadisse as cidades próximas da costa.

Tudo o que com dificuldade havia sido construído em ambas as cidades era levado pela força da enxurrada. Alguns corajosos, por amor aos seus bens, se arriscavam em meio a correnteza na tentativa de salvar os bens. Nunca um fenômeno de tamanha grandeza tinha passado aos olhos das famílias que ali residiram. A enxurrada fez do Natal de 1995 a pior lembrança dos que a presenciaram.

As famílias que perderam tudo

Dentre as várias famílias que perderam praticamente todos os seus bens, está a de seu Pedro Panato Neto. Depois de irem à missa de Natal eles foram jantar. Após o jantar, seu Pedro e sua família seguiram até o engenho de arroz da família na intenção de guardar a caminhonete. Notaram neste momento que as águas do rio, que passava atrás do engenho, estavam subindo.

Guiados pela intuição, eles começaram a levantar os produtos que estavam depositados dentro da indústria. “Chovia, mas não muito forte. Do nada a água começou a subir muito rápido”, relata Viviane, uma das filhas de Panato.

Durante a subida das águas, Panato lembrou que havia se esquecido de desligar a energia do engenho. Temendo acontecer um curto circuito, ele resolveu enfrentar a correnteza, que naquele momento já havia invadido o interior da indústria. “Tivemos que estender uma taquara para ele segurar e conseguir sair lá de dentro, caso contrário a água teria levado ele também”, conta a filha.

Pelo fato de o engenho da família Panato possuir paredes de grossa espessura, a força das águas não conseguiu derrubá-las. Mas tudo que havia em volta foi levado pela forte correnteza. “Igual àquela enchente, não vi outra igual. Nem meu pai, com 80 anos na época, tinha visto algo assim”, relata Panato.

“Foi o pior dia da minha vida”

O comerciante João Carlos Marcos viu seu empreendimento indo por água abaixo, literalmente. “Foi o pior dia da minha vida”, relata ele.

Diante do desespero de tentar salvar alguma coisa, João Carlos conta que permaneceu dentro de sua oficina até os últimos instantes que pôde. “Tive que sair nadando lá de dentro”. Mesmo com todo o esforço, ele nada pode fazer diante da rápida e crescente inundação.

Havia cinco anos que o comerciante tinha iniciado seu empreendimento naquele local. E na manhã seguinte, quando as águas já estavam voltando ao nível normal, a tristeza e o desespero foram sentimentos inevitáveis. “Naquela noite eu deixei de acreditar em Deus”, confessou Marcos, que observando a situação não conseguia entender como Deus poderia deixar aquilo acontecer.

Mas era preciso buscar forças para recomeçar, e a fé em Deus, da mesma forma como surgiu a enchente, ressurgiu novamente. “Foi somente enquanto estava desesperado com a situação”, explica o comerciante.

Seu Panato, que é católico, relembra emocionado a única coisa que restou em seu engenho. O crucifixo na parede. Ouça abaixo:



O recomeço

Após o nível das águas baixarem, a família Panato teve que enfrentar um novo desafio. Desta vez o obstáculo estava em reconstruir o que tinha sido levado pelas águas. Como a necessidade de voltar a trabalhar era grande, por conta do prejuízo que tiveram, 20 dias depois do ocorrido já estavam trabalhando novamente. “Ficamos dois anos trabalhando somente para pagar as contas do que foi perdido, não saímos para lugar nenhum”, conta Seu Panato.

Viviane diz que até hoje pensam em como conseguiram se recuperar daquilo. “Se fosse hoje não iríamos ser capazes de reagir”, confessa ela.

Atualmente a indústria de Seu Panato está recuperada. Aquilo que as águas levaram, o suor dos seus rostos trouxe de volta. Restou apenas o aprendizado. “Para mim não foi uma coisa tão ruim, aprendi coisas que antes não sabia. E aquilo foi um fenômeno da natureza que qualquer ser humano pode enfrentar um dia. Serviu para ver o quanto somos fortes”, explica Panato.

A família de João Carlos também teve que reconstruir tudo, não havia restado nada. “Eu fiz a lavação no mesmo local. As pessoas falavam: 'ô João, você é teimoso, vai fazer no mesmo lugar?!' Mas eu dizia: 'esse chão é meu e vou construir aqui novamente'. Se eu tivesse desistido, não teria o que tenho hoje”, conta ele.

O resgate

No dia 24 de dezembro já eram registradas as primeiras mortes. Conforme dados da Cruz Vermelha e do 28º GAC (Grupo de Artilharia de Campanha), que trabalharam no resgate das vítimas, entre a região do Extremo Sul de Santa Catarina e o Norte do Rio Grande do Sul, foram registradas 28 mortes.

Almir Fernandes de Souza, um dos membros da Cruz Vermelha que participou do resgate, relata dados que ficaram arquivados a respeito de uma família de 10 pessoas que teve sua casa levada pela enxurrada.

“Uma vítima (não encontrada) morreu dia 24, após um deslizamento de terra no morro São Pedro, arrastando uma casa com 10 pessoas da mesma família. No dia seguinte, três pessoas desta família foram encontradas por bombeiros em meio a uma plantação de arroz. Nos dias 25 e 26 foram encontradas mais vítimas no morro São Pedro, em Nova Veneza. Entre as vítimas, mais uma mulher da família de 10 pessoas. As buscas seguiram até o dia 6 de janeiro, quando encontramos a última vítima daquela família em um rio próximo ao Restaurante Guellere, era também a última vítima do resgate”, relembra.

Almir conta ainda a parte mais marcante do resgate para aqueles que lá trabalharam. “Lembro-me que às 23h do dia 31 de dezembro estávamos lá no morro São Pedro, buscando uma das vítimas nos escombros de pedras e árvores, quando avistamos os fogos de artifício, lá do Caravagio, comemorando o Revéillon de 96. Ficou marcado em nossas mentes, até hoje”, conta.

Desabrigados e mortos foram levados ao Morro da Igrejinha, uma escola onde foram improvisados exames e até os sepultamentos em valas também improvisadas. Depois, as vítimas foram transportadas em helicópteros aos hospitais e abrigos de resgate.


Durante a enchente, família recebeu um novo membro

Marli Moretto deu à luz durante a enchente. Jonatha, o filho, costuma dizer que foi trazido pelas águas.

Para os forquilhinhenses, a lembrança da enchente de 1995 é triste. Muitos narram o que perderam, mas a família Moretto Ronchi também teve alegria. Poucos dias antes do Natal, Marli Ronchi percebeu que está chegando ao fim a gravidez.

Mãe e filho seguram, orgulhosamente, a certidão de nascimento do bebê que nasceu durante a enchente. (Foto: Fernando Nunes Werner)

O que poderia ser pior, foi contornado com a precaução. Alertada pela família, Marli decidiu ficar na casa da sogra, em Criciúma, até que as chuvas diminuíssem e pudesse voltar a Forquilhinha para que Jonatha pudesse nascer. A enchente se arrastou por vários dias e o bebê acabou por nascer em Criciúma.

Roteiro e edição:Elariana Fernandes
Reportagem: Elariana Fernandes, Gean Langer, Giovani Langer e Fernando Nunes Werner.
Professor orientador: Elias Rafael
Disciplina: Web Design
Fotografia: Família Panato/Gean Langer
Áudio: Elariana Fernandes
Vídeos: Canal Ghelere/YouTube

MATÉRIA INTERATIVA
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